terça-feira, 15 de março de 2011

VOZ DA MINHA TRISTEZA

TRISTEZA

Tristeza, tudo sente o teu efeito:
a fonte deslizando clara e pura;
o rouxinol saudoso, em cujo peito,
vibra a harmonia, a arte, a formosura;

a rosa perfumada, cuja alvura,
seduz o nosso olhar; o amor perfeito;
as árvores na solidão da selva escura;
a lua que nos mostra o beco estreito.

A brisa que suspira, afaga e corre,
no momento em que o sol ao longe morre,
à hora das Trindades, junto à tarde.

Por que não há-de, então, dentro da gente,
arder, arder, meu Deus, eternamente,
essa chama fatal que em tudo arde?

1939


SAUDADE

Saudade é um perfume que nos resta
duma vida feliz que já tivemos.
São gratas impressões, que não esquecemos,
mudadas, hoje, em dor que nos molesta.

É sombra deleitosa onde, na sesta,
momentos de regalo já vivemos;
é ter em nós o tudo que perdemos,
quando a vida para nós era uma festa.

É, sendo mortos, estarmos a viver
na memória de alguém que inda nos ama,
vivendo ternurento entardecer.

É um belo céu azul e transparente;
é a lágrima ardente que derrama,
batendo, um coração, dentro da gente.

1939


EM VEZ DE REZAR

Cai, sobre mim, a sombra do passado.
Pairam, no céu, lembranças doutras eras.
Ouço, cá dentro, música de esferas
e o meu espírito queda deslumbrado.

Fernando, já não és quem dantes eras:
tudo mudou. És lume já apagado.
Agora é só lembrar, qual desterrado,
a pátria onde viveste horas sinceras.

A sombra cai lenta, lentamente.
E deixa um não sei quê dentro da gente.
Um não sei como, difícil de explicar.

A sombra cai; com ela a noite desce.
Hora suprema e íntima de prece .
Mas em vez de rezar fico a chorar.

1949


GUARDADOR DE SONHOS

Sou desde sempre um guardador de sonhos;
e que belos rebanhos pastoreio.
As serras onde pastam são o seio
dos pensamentos belos e risonhos.

Mas andam, vagueiam, tresmalhados
por mais que os vigie e que os guarde;
e, desde o amanhecer ao fim da tarde,
eu ando sempre preso de cuidados.

Descem aos vales, sobem as encostas.
E de tocar os céus quase dão mostras;
e eu, cá muito ao longe, quedo a vê-los,

desejoso que almejem mais distâncias;
que vão mais longe; mas sentindo ânsias
que por lá fiquem... e eu possa perdê-los.

1954


NOS PINHEIRAIS

Nos pinheirais sombrios chora o vento
mil suspiros e ais de desventura.
Endechas de saudade e de amargura,
tristezas de profundo sentimento.

Lá longe, muito ao longe, manso e lento,
vai-se o sol a tombar na sepultura,
que rouba a sua luz, alegre e pura,
à terra de quem é forte alimento.

Dentro de pouco, sobre a natureza
a noite desce, prenhe de tristeza,
mãe de segredos, espectros, de mistério.

Surge a Lua, depois, além na serra.
E lá no espaço azul ciranda e erra,
qual uma flor de sonho pelo etéreo.

28 de Outubro de 1936


SAUDADE ACESA

Não há nada mais doce nem mais brando
ao coração da gente portuguesa,
do que na alma sentir, de quando em quando,
a chama branda da saudade acesa.

Saudade é terno beijo ressoando
dentro de nós, num grito de tristeza;
divino grito pelos céus voando,
sonho que foi miragem de beleza.

Mas só pode senti-la, com verdade,
quem teve, neste mundo, a felicidade
que põe a nossa alma em Primavera.

Quem não foi um dia frio ou quente,
não pode ter no peito a chama ardente
da saudade que é doce e dilacera.

Penafiel, Novembro 1936


HORA DE PRECE

Vem peneirando a noite, além, na serra.
Uma ambiência de paz, religião,
envolve a natureza e se descerra
para a saudade o nosso coração.

Um ar indefinido passa e erra
no mundo recolhido em solidão.
O sol morreu e agora, ungindo a Terra,
a luz crepuscular é extrema unção.

Hora de misticismo e de harmonia,
de sonho, de tristeza, de doçura
de medos de outro mundo, que arrepia.

Esvai-se a meia luz. A noite desce.
Passam aves em bando pela altura.
Silêncio. Evocação. Hora de prece.

1945


TEMPO LEDO

O tempo ledo em que vivi, contente,
sumiu-se como fumo. É já passado.
Ai como tudo foi um sonho alado.
Ai como tudo foi, rapidamente.

Hoje a saudade, como chama ardente,
arde em meu coração, desencantado.
Mas como é bom este agridoce estado
de viver hoje o que ontem foi presente.

Lembrar é reviver. Por isso eu lembro,
por isso eu esqueço as núncias de Novembro,
deste meu coração que se enternece.

Jamais posso olvidar tanta quimera,
e tê-las todas, todas, quem me dera,
pra não temer a noite que já desce.

1939


PENA DE TUDO

Tenho pena do tempo que passou
e hei-de tê-las do tempo que há-de vir.
A alma que o Eterno me insuflou
é este poema eterno de sentir.

Quando Deus meu corpo modelou,
teve um esgar de irónico sorrir.
E ao meu mortal ouvido segredou:
Aí tens um coração para carpir.

Lágrimas, penas, dores e sofrimento,
eis tudo com que sais da minha Mão,
que assim é da vida a dura lei.

Desde que entrei no louco aturdimento
do meu viver fatal, meu coração
tem saudades de coisas que eu nem sei.

Outubro de 1938

FOGO DESFEITO

Ó fogo do meu lar, fogo desfeito,
da minha infância que vivi outrora!
Pela lembrança estás comigo agora!
E esse beijo de pranto, ó Dor, aceito.

Todo o meu ser, enfim, lhe está sujeito;
sou um cair de tarde ou luz de aurora;
e rindo, às vezes, ou chorando embora,
meu coração de triste é satisfeito.

Ai como a vida corre tão veloz.
Tudo nos leva e só nos deixa a voz
desta saudade, em nós, por nosso mal.

Ó fogo do meu lar, ó fogo amigo,
ai deixa-me aquecer! Fala comigo,
daquelas santas noites de Natal.

20 de Abril de 1984


CAEM FOLHAS

Caem folhas, uma a uma, sobre
os passeios do parque da cidade;
a luz do sol até parece um dobre
a finados, lembrando a eternidade.

Nesta luz outoniça se descobre
qualquer coisa de estranha suavidade,
que cai dentro da gente, e que nos cobre
duma bendita paz e intimidade.

Caem folhas no parque e a gente passa,
com os olhos abertos, sem olhar
aquela dor humilde e tão calada.

Também dentro de nós - ai que desgraça! -
caem folhas, sem fim, ao recordar,
com ais de uma saudade magoada.


SONHO

Sonhei-me numa ilha flutuante,
matizada de mágica verdura;
de arquitectura bela e deslumbrante,
de esplendorosos sóis da luz mais pura.

Mulheres de uma beleza fascinante,
nesse jardim ideal punham ventura.
Então, meu coração sentiu-se amante
de tanta deusa linda, ó vã ventura.

Cingindo brancos véus, essas visões,
passam junto de mim, quais procissões
de querubins e virgens vaporosas.

Mas nisto os olhos abro e então deparo:
um mundo de paixões, de ódio ignaro,
de mágoas e tristezas dolorosas.

1938


PERDIDO AÍ

Ó virgens que passais , ditosamente,
na sede de viver da vida os gozos!
Andai, vinde falar-me intimamente
aos meus desejos tristes e saudosos.

Serei um sonhador, eternamente.
Um sonhador! Que fados dolorosos.
Sempre em busca da luz alvinitente,
desses dias de sol esplendorosos.

Ó virgens que passais rindo e cantando,
qualquer de vós é estrela fugidia,
que me sorri dum céu formoso e brando.

Ó virgens que passais, cantai, cantai.
Que na estrada da vida escura e fria
eu sou , sei lá , talvez, perdido ai.

Gatão, 16 de Outubro de 1950


FALA SÓ

Eu nasci para ser um fala só,
um triste, um desditoso, um descontente,
do bem que desejei, eterno ausente,
de que ninguém tem pena nem tem dó.

Recebi o baptismo dos poetas,
pois que o mal de sentir trago-o em mim.
Nunca entrarei na Torre de Marfim,
onde a alma é feliz como águas quietas.

Pelos desertos de mim, peregrinando,
aos altos céus cerrados, vou gritando
estes meus ais de um fala -só tão triste.

Num silêncio de breu sou envolvido.
E de mim tão ausente, esmorecido,
que já não sei se esta minha alma existe.

1953


ASTRO SEM LUZ

Eu ando triste como as violetas
humildes, escondidas nos valados.
Não tenho sonhos, já, nem vãos cuidados.
Vivo longe da luz , como os ascetas.

Não interrogo a esfinge como os poetas,
nem levanto aos céus trágicos brados.
Nem tenho pensamentos desesperados.
E são meus olhos duas chamas quietas.

Para mim não há passos nem caminhos.
Fugido estou na paz da solidão
onde vivo, contente, assim sozinho.

E nem sequer já ouço o coração.
Tudo ara mim morreu: nem pão nem vinho.
Sou astro, pois, sem luz na imensidão.


Outono

Dias de Outono, pálidos, cinzentos…
Tombam as folhas. Dor. Melancolia.
A Natureza padece uma agonia
E na cabeça há tristes pensamentos.

A chuva cai dos altos firmamentos
E o vento sopra e torna feio o dia.
Morreu a Cor, a Luz; e a nostalgia
Apossa-se dos nossos sentimentos.

Um mau-estar invade o nosso ser;
O nosso olhar, assim não pode ver
Esses largos e belos horizontes.

Essa imponência triunfal do Estio
Apagou-se qual chama de um pavio
E não se ouvem já rezar as fontes.

12.10.78


Querer

Querer ter uma coisa e desejá-la,
Mas que somente fica no desejo,
É caminhar ao longo de uma estrada
Sem ter da luz dos céus um quente beijo.

É uma manhã envolta em nevoeiro
E que se muda à nossa ansiedade
Num tédio pardacento de Janeiro
Feito de tédio só e de humidade.

É experimentar a perda de um encanto
Que nos iluminou mas que se nega
A dar-nos o que havia prometido.

É sonho que falhou; é dor e é pranto;
É ilusão doirada que nos cega
Na ânsia de agarrar um bem perdido.

1966



Tristeza

O espinho da tristeza que sentimos
Quem é que o pode ao certo traduzir?
Virá, a nós, dos astros donde vimos
E para onde um dia havemos de ir?

Não sei, apenas sei que ela crepita
Dentro do coração como fogueira.
Fogueira que a lenha da desdita
Alimenta durante a vida inteira.

Se a saudade humedece os nossos olhos,
Logo a tristeza em escuro véu de escolhos
Cai sobre nós enchendo-nos de dor.

Ó tristeza sem fim, ó coração,
Tu tens que cantar sempre esta canção
Enquanto neste mundo houver amor.

1939



Estranha Procissão

É uma Tapada com catorze cruzes
Como aquela do ´´Só´´ de António Nobre.
No seu aspecto escuro se descobre
Estranha procissão com estranhas luzes.

E passam negros frades com capuzes:
E um sino em som funéreo, com seu dobre,
de fundo medo toda a gente cobre.
Ó procissão onde é que tu conduzes?

Responde em voz soturna: a minha idade
É velha como o mundo e imprecisa,
Como imprecisa é a humanidad e-

E tanto em mim, agora como dantes -
qual fantasma que ao longe se divisa – :
Há dores e gritos, gestos lancinantes.


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