terça-feira, 15 de março de 2011

VOANDO MAIS ALTO

Vêm até mim do mundo da distância
os tempos que vivi na minha infância.

Olhando para mim vem-me a lembrança
mostrar-me o que fui quando criança.

E então nos olhos meus aflora a água
que nasce desta fonte: a minha mágoa.

Sentir recordações é ter no peito
um mundo de beleza em cinzas feito.

Recordar, recordar...que sonho brando
sem se dormir, sem mesmo estar sonhando...

Recordar o passado é outra vida
mais doce, mais serena, mais vivida.

Ouvirmos esta voz de evocação
é sermos nós somente, coração.

As lembranças são, sim, tristes abrolhos
com saudades rasgadas pelos olhos.

O recordar é isto: é ser só alma:
sentir uma saudade doce e calma.

E termos a visão bem clara e forte
que a própria vida é quem nos leva à morte.

Recordar, que bom é recordar...
e pelo mundo dum sonho vaguear.

Pelo sonho voar... ave saudosa
a pousar, a pousar em tanta cousa.

Vêm até mim a infância e a mocidade.
Vinde, vinde, nas asas da saudade.

Ó minha infância, ó minha infância linda...
ai quem me dera ser infante, ainda.

1937


DEFINIÇÃO

-Que é o amor, afinal ? O amor é lume
que tem por lar o nosso coração.
-E quem o atiça? O vento do ciúme.
-E quem o apaga? O ódio e a traição.

1937


A SOMBRA DE JESUS

Na síncope do dia, em tardes calmas,
descem lições de Deus por sobre as almas.

E o nosso olhar cansado de sofrer,
deseja, nessa calma, adormecer.

O coração não sente ódio ou vingança
pois todo ele é um lago de bonança.

Tardes de paz à hora vespertina
de unção religiosa, unção divina.

A alma toda inteira se inebria
dum fundo e puro odor de poesia.

Ó sincope do dia, oh tardes calmas,
beijos de Deus, suaves, sobre as almas.

As sombras, na distância, projectadas
são imagens de vida apagadas.

Naquele outeiro, além, surge uma luz.
Sabeis o que é? A alma de Jesus.

Como outrora no mundo do delito,
sobe outra vez o mártir bendito.

Que virá Ele dizer à sua gente?
Que nova sombra espera o Ocidente?

E o Bom Jesus faminto de outras eras
olhou para mim e disse: porque esperas?

Meu Senhor e meu Deus, sou pecador.
Perjuro a Vossa Lei e o Vosso Amor.

Perdoai -me, Senhor, a ofensa cometida.
E não esqueçais minha alma redimida.

Caiu a tarde, enfim , é noite agora:
E à luz do Sol seguiu-se estranha aurora.

Voltou à sombra a alma de Jesus,
mas na Noite ficou intensa Luz

E a Luz lá vai, de vale em vale
Para salvar das Sombras Portugal.

Ó bíblicas, ó doces tardes calmas,
só vós sabeis transfigurar as almas.

1948


UMA FOLHA QUE TOMBOU
(a José Teixeira Monteiro)

Como a folha que caiu,
com a fúria de um tufão,
um velho amigo morreu
que eu tinha no coração

Filho de Vila Caiz
que muito novo deixou,
na Covilhã, lá tão longe
nunca a Mãe -Terra olvidou.

A sua alma era crente,
de crença sem hesitar:
por isso junto de Deus,
está hoje a descansar.

Descansa, pois, lá no céu,
descansa meu bom amigo.
Mais um dia e também eu
lá no céu serei contigo

1994


SENTENÇAS

Morrer com Deus nada custa
morrer sem Deus nos assusta.

Quem a lei de Deus respeita,
tem no céu a cama feita.

Ai de quem anda no mundo
com a cabeça pró fundo.

Quem traz a alma perdida,
morto já anda na vida.

Quem só olha pro aquém,
nunca chega a ver o bem.

Levanta os olhos pro alto
pra dares o último salto.

Quem não ama o seu irmão
tem pedras no coração.

Quem não ora e quem não reza
vive em extrema pobreza.

Não digas mal de ninguém
que atrás de ti outro vem.

Quem respeito quiser ter
há-de ter que o merecer.

Se voares alto de mais
entre duras pedras cais.

Quem à frente vê Jesus
até alegria tem na cruz.

Quem na dor se desespera
boa morte não espera.

Quem não lê na luz do dia,
não vê Deus como devia.

Tudo o que vemos na Terra,
o poder de Deus encerra.

Vejo Deus num belo verso
quanto mais no Universo.

Quem vive na negação
tem trevas no coração.

Quem em Deus tem confiança,
mostra fé e mostra esperança.

A dor se for bem vivida
é já resgate na vida.

Não dês escândalo às crianças
que de Deus perdes as esperanças.

Quem tem a sabedoria
de Deus, tem paz e alegria.

Quem a não tem, esse então,
tem guerras no coração.


MAIO

Já chegaste Maio
com teu rosmaninho
que consola a gente
com tão bom cheirinho

Já chegaste Maio
com tão linda flores
com os teus encantos
mais os teus amores

Já chegaste Maio
com as cerejeiras
que seduzem bocas
muito lambareiras

Já chegaste Maio
de finas verdura
onde cantam aves
lindas canções puras

Já chegaste Maio
com a nossa brisa
que o rosto nos beija
e nos suaviza

Já chegaste Maio
com teu sol tão lindo
que me leva em sonho
pelo espaço infindo

Já chegaste Maio
com teus fofos ninhos
donde depois voam
ledos passarinhos

Já chegaste Maio
com as borboletas
de asas de cetim
com pintinhas pretas

Já chegaste Maio
ledo e prazenteiro
mais o melro negro
de Guerra Junqueiro

Já chegaste Maio
Maio das delícias
que nos enfeitiça
com suas carícias

Já chegaste Maio
com teu claro sol
com a casa as costas
sai o caracol.

Já chegaste Maio
já chegaste sim
com cravos e rosas
e o doce jasmim

Já chegaste Maio
de perfume e cor
de alegria e esperança
e bençãos de amor

Já chegaste Maio
Maio dos tovões
que cobrem de medo
nossos corações

Já chegaste Maio
Maio de Maria
Mãe que nos ampara
e nos vale e guia

Já chegaste Maio
Maio das novenas
a Nossa Senhora
Mãe das nossas penas.


ORAÇÃO

É noite.
Chora o murmúrio vago duma fonte,
voz perdida no ermo e solidão.
Ou será canto triste ou só lamento?
Ou doce murmurar duma oração?


CANÇÃO DAS DONZELAS

Noite de prata,
noite de estrelas,
junto à cascata
cantam donzelas;
e o S. Pedrito,
todo bondade,
escuta o grito
da mocidade;
noite de rosas,
lua a boiar,
moças graciosas,
toca a dançar.
Vamos à roda,
vamos rodar
a noite toda,
à luz do luar.
Ó raparigas,
lá vem a aurora;
querem cantigas?
Vamos embora;
tanto folguedo:
a mocidade
morreu bem cedo!
Ai que saudade.

1952


MANHA DE NÉVOA

Manhã de névoa, manhã de névoa
tão branca e fria;
ai que saudade comigo (e levo-a)
ai que saudade comigo (e eu levo-a)
pra madrugada dum novo dia.

Ando perdido lá na distância,
longe de mim.
Oh inocência da minha infância,
ah inocência da minha infância
envolto em brumas lá no sem fim.

Nesta saudade que me transporta
e transfigura,
ressurge o anjo da infância morta,
ressurge o anjo da infância morta,
lírio nevado de formosura.

ai como custa , minha tristeza,
viver assim.
Ai quem me dera ter a pureza,
ai quem me dera ter a leveza,
dessa alma pura dentro de mim.

Hoje na noite ando envolvido.
Ai quem sou eu?
Oh anjo meu, em bruma escondido?
Ah anjo meu por longe fugido,
que é dessas asas em que ia ao céu?

Ando perdido pela Distância.
Perdido sim.
Não vejo a Anjo da minha infância,
Não sei do anjo da minha infância,
Quando Deus estava dentro de mim.

Manhã de névoa, manhã de névoa
tão baça e fria!
Ó aura esperança comigo (e eu levo-a),
Ó esperança rasgando a névoa,
Ah! Já não temo que morra o Dia.

1951


LUZ E TREVA

Trago não sei o quê dentro do peito
que me banha de luz ora de treva
e faz de mim eterno insatisfeito.

Não sei que quero e neste mundo triste,
não sei pra onde vou nem quem me leva
neste fadário atroz que me resiste.

Eu vivo numa intensa ansiedade;
em charcos bebo, ó Água da Verdade
que dos meus lábios secos me fugiste!

No íntimo de mim, ó funda mágoa,
uma fogueira ardente, um lume vivo,
põe os meus pobres olhos rasos de água.

Pobre de mim sem luz, sem luz assim,
na cruz da minha dor eu sou cativo
e fico nesta cruz aquém de mim.

Pra que nasci se havia de sofrer
o drama desta minha inquietação,
no desejo de tudo compreender?

Tu não sabes que a vida é sofrimento?
E que dentro do peito o coração
gera mundos sem fim de sentimentos ?

A dor é a mãe da nossa perfeição
que voa a Deus nas asas da poesia
para assim nos libertar desta prisão.

Bendita seja a dor e este desejo
que no Cárcere da minha escravidão
me põe na alma a música dum beijo.

Bendita sejas tu, minha irmã dor,
que me trazes Jesus no coração
e pões meu peito em frémitos de amor!

Amo-te ó Dor, ó Dor que purificas
o meu humano lodo e podridão,
pro converteres depois em jóias ricas.

Amo-te sim, ó Dor que mortificas.
Ó Dor, segunda Cruz da Redenção.

1951

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