terça-feira, 15 de março de 2011

CANTOS DA MINHA SAUDADE

Cair da Noite

Cair da noite. Hora da sombra e reza.
E a alma vai errando pelo espaço,
em busca do Ideal e da Beleza,
que nos mata esta fome, este cansaço.

Hora crepuscular, divino laço
que nos liga à saudade e à tristeza.
Laço que a Deus nos prende, num abraço,
e nos tira da alma esta incerteza.

Tudo já encobre o manto da noitinha.
E um silêncio de Deus nos acarinha,
e o fumo sobe acima dos casais.

A minha alma, então, põe-se a cismar.
E outro mundo julga adivinhar:
esse Mundo de medos espectrais.

Paços Ferreira, 1943


Voz das Coisas

Ouvir a voz das coisas e cantá-las;
fazer da dor de tudo a nossa dor;
sorrir a cada riso de uma flor;
ver as estrelas e querer beijá-las.

A tudo consagrar profundo amor;
ser como as criancinhas e afagá-las;
em tudo, tudo, ouvir íntimas falas,
cá neste nosso mundo interior.

Eis o drama maior do sentimento
que faz bater o nosso coração,
que para o mais é dor e sofrimento.

Ser poeta, Senhor, eis a razão
deste mal e fatal desvairamento
que chora, que blasfema e é oração.

5.1.1949


Ouvir a voz das coisas e cantá-las;
fazer da dor de tudo a nossa dor;
sorrir a cada riso de uma flor;
ver as estrelas e querer beijá-las.

A tudo consagrar profundo amor;
ser como as criancinhas e afagá-las;
em tudo, tudo, ouvir íntimas falas,
cá neste nosso mundo interior.

Eis o drama maior do sentimento
que faz bater o nosso coração,
que para o mais é dor e sofrimento.

Ser poeta, Senhor, eis a razão
deste mal e fatal desvairamento
que chora, que blasfema e é oração.

5.1.1949


País da Promissão

O verde -negro e triste dos pinheiros
em filas, pelos montes ensombrados,
lembram, de longe, bíblicos soldados
esperando exércitos estrangeiros.

E outras vezes, monges retirados
do mundo e seus perigos traiçoeiros,
orando, sem cessar, anos inteiros
pelas culpas dos homens mal guiados.

Ó filhos do silêncio e da tristeza,
há séculos sem fim a soluçar
a desconhecida dor da Natureza!

Sois irmãos do meu triste coração:
outro guerreiro e monge a procurar
o encantado país da Promissão.

1939


Gota de Chuva

Uma gota de chuva que desliza
por sobre o vidro fino da vidraça,
é o mar sintetizado -encanto e graça -
que o nosso coração sensibiliza.

Mas essa mesma gota simboliza
a alegria que o nosso peito enlaça,
como um raio de luz quando trespassa
a gota que em mil cores se cristaliza.

Uma gota de chuva pequenina
é lágrima do céu, pérola divina;
acenos de bênção e claridade.

Uma gota serena a deslizar
são olhos, muito tristes, a chorar,
perdidos na distância e na saudade..


Ao Pé do Lume

A gente cisma, cisma, ao pé do lume
e recorda outro tempo que lá vai;
desfeito na distância como um ai
que sai do nosso peito num queixume.

Da infância não se tem já o perfume;
a inocência secou, já longe vai.
De Deus a graça já em nós não cai,
que hoje em pecado a vida se resume.

Um mundo de memórias me rodeia;
eu vivo da memória a toda a hora;
o que fui ontem não me sai da ideia.

O menino que fui, alma de aurora,
sinto-o dentro de mim, de graça cheia,
namoração de Deus, que me enamora.

30 Nov 1978.


Estranho Encanto

O sol se põe ao longe, num langor.
Dentro de pouco a noite envolve o mundo.
O mistério da Noite, mais profundo,
inunda-nos a alma de pavor.

A lua, lá no céu, com seu alvor
cobre de pérolas e silêncio o mundo;
no bosque solitário e mais profundo,
o mocho pia, um pio aterrador.

Sigo atrás da noite a meditar.
E em tudo o que me cerca ouço gritar
a voz do Ignoto, do Segredo e Espanto.

Paro. Interrogo a noite que me fala.
E essa fala da noite, que me abala,
desperta na minha alma estranho encanto.

19 Julho de 1979


Não É de Carne

Não é de carne a minha namorada,
que eu contemplo em saudosa aparição.
A sua voz divina e imaculada
é voz duma longínqua aspiração.

Não é de carne a minha namorada,
que, se de carne fosse, o coração
não sentiria a chama consagrada,
que me chama à divina solidão.

A minha namorada... ao fim da tarde,
quando o sol é uma lágrima que arde,
é que eu vejo e sinto em mim falar.

A minha namorada é lá do céu,
mas anda em mim perdida desde que eu
deixei a luz que agora ando a buscar.

Penafiel 1945.


Cigarro

Em volutas azuis, por esse espaço,
sobes, ó fumo, do meu cigarro amigo!
E eu nesta prisão a que me enlaço...
Ah não poder também subir contigo...

Sinto o meu ser pesado de cansaço,
e não vejo na terra um peito amigo
que venha de mãos dadas, passo a passo,
ao pé do mundo a caminhar comigo.

É bem dura, Senhor, esta jornada
que iniciei naquela madrugada,
perdido num além, cheio de bruma.

Cigarro, meu amigo, ouve o meu grito,
que vai deste meu peito ao infinito
em volutas de sonho que se esfuma.


Em Toda a Parte

Em toda a parte deixo uma saudade,
em toda a parte deixo uma esperança,
prende-me a toda a coisa um lembrança,
pressinto em toda aparte a eternidade.

Na luz desta divina claridade,
profunda claridade que não cansa,
vejo-me no que fui quando criança.
E infante volto a ser , em outra idade.

Cada lugar, em que passei um dia,
inunda esta minha alma de alegria:
que mundo de saudosa evocação!

Hei-de morrer um dia? Que me importo...
se na saudade minha que transporto,
deixo a bater, em tudo, o coração.

1947


Imensa Catedral

A noite vem caindo. A natureza
é um manto de mistério e nostalgia.
A brisa que perpassa mal cicia
e a água, em seu murmúrio, é uma reza.

Nas cristas lá da serra, que beleza:
A lua vai nascendo branca e pia;
no pinheiral sombrio o mocho pia
enchendo o ar de agoiros e tristeza.

Reina o medo na noite misteriosa
(na noite, minha irmã), noiva saudosa
do sol esplendoroso e triunfal.

Eu sondo o seu segredo e fico longe...
E deixo de ser eu para ser monge,
rezando nessa imensa catedral.


A Lua Cheia

Na vastidão escura dos pinhais
floresce linda e branca a Lua - Cheia:
a sua luz é mística candeia
a caiar as paredes dos casais.

Seu níveo rosto os seus aformoseia
e põe no mundo formas espectrais:
é uma visão de sonho a minha aldeia
que me seduz e que me encanta mais.

E a lua sempre branca via subindo;
a minha alma de poeta vai sentindo
um ar de misticismo sobre as cousas.

E subindo com ela ao céus, então,
mais fundo vou descendo ao coração:
que profusão de dores misteriosas!


Sol de Outono

Vai -se o sol de Outono a desmaiar,
num adeus de saudade ardente e viva,
adeus na minha face a deslizar
na forma duma lágrima captiva.

Reina a alegria (ó duro gargalhar
na paisagem estática e aflitiva)!
As árvores são olhos a chorar
como freira de fronte pensativa.

Vindimas! Há risadas e cantigas
e lábios sensuais de raparigas
acendendo desejos de pecado.

Almas que tanto rides...nem pensais
na Luz que vai caindo, em mudos ais,
como Jesus, na cruz, ensanguentado.


Neve

Caiu neve. Depois a chuva veio
e a brancura das serras destruiu.
E um íntimo desgosto se sentiu
ao ver desfeito o lindo devaneio.

Mas pra que foi que a chuva sem enleio
de nos magoar, dos altos céus caiu?
Que lindo devaneio nos fugiu
sem luta, sem pecado e sem anseio!

Que esses montes extensos de brancura,
se lhes davam os raios de luar
eram estranhas visões de fantasia.

Dentro de nós havia só brandura:
o vil instinto deixava de gritar
era só paz, sossego e harmonia.


Versos

Versos bailai, bailai no pensamento
e vinde para a luz que nos espera.
Versos do meu sentir, ai quem me dera
gritar, como me pede o sentimento.

Que tudo o mais é fumo, uma quimera
que se desfaz e apaga , num momento.
São penas que se vão, no rijo vento,
Ó dor de não vencer, como quisera.

E nesta chama enorme, indefinida,
eu vou assim durante a vida inteira,
sem ver, jamais, a estrela apetecida.

Ó ânsia de querer mais, ânsia primeira,
de querer chegar à Terra Prometida:
a luz da nossa esperança derradeira.

Gatão, 6 de Nov 1950.


Manhã de Inverno

Manhã de Inverno, carregado e baço,
de espesso nevoeiro e aragem fria.
Do sol amigo ausente que alto passa
e a quem não vemos raios de alegria.

As aves tão gentis, mimos de graça,
calaram seus trinados de harmonia,
e a flor humilde é uma taça
a transbordar de mágoa e nostalgia.

Inverno: chuva, vento, árvores caídas,
águas aos vagalhões, enlouquecidas
nas tormentas da noite como breu.

Nesses dias, no lar onde arde o lume,
sente-se mais , no íntimo, o queixume
das saudades de um bem que se perdeu.


Em Memória

As memórias dos tempos que passaram,
aquela idade de oiro e de marfim,
eu sinto-as falar dentro de mim
de tantas coisas, tantas, que se amaram.

E em minha alma saudosa despertaram
tantas recordações que não têm fim.
Como a gente se sente bem assim,
quando os olhos pra longe se alongaram.

Ah todo eu sou uma viagem de alma,
por florestas de sonho e doce calma,
cujo silêncio fala e me enternece.

Trago um mundo de coisas no meu peito
que o coração amou.E, de tal jeito,
que sempre que as recordo se me aquece.

1954


Passado e Futuro

Ao Reino do Passado, certo dia
desci, de coração desfeito em pranto.
Quem pode lá saber o que eu sentia!
Quem pode lá saber o meu encanto!

Dali houve tristeza, houve alegria,
nenhuma delas mais, mas tanto e tanto.
E transitei, depois, por simpatia,
para o Futuro ver, com grande espanto.

Mas perdi-me , perdi-me lá na altura
dessa cúpula imensa e constelada
onde só o Segredo é que murmura.

De tudo quanto vi sei : não sou nada;
Sou bem menos que pó e cinza escura,
na minha forma humana, levantada.

1954


Brumas da Distância

Vem até mim, das brumas da Distância,
uma voz que me fala e compreendo.
Quantas vezes , Senhor, me surpreendo
com o anjo que fui na minha infância.

E com ela eu brinco nessa Estância
toda cheia de graça! E assim vou lendo
nesse livro de luz, que eu só entendo,
esquecido da dor que me enche de ânsia.

Rapazinho, outra vez, me sinto eu,
no fim desta viagem que não cansa;
sou do Tempo isolado e já no céu.

Ó milagre divino da lembranç,a
que me tirou do tempo e me ascendeu
ao reino da Inocência e nova Esperança.


Origem

Qual será a origem da saudade,
chama que toda a vida nos magoa?
Virá de fonte má ou fonte boa?
Ao certo responder quem é que sabe?

Apenas sei que a sinto, na verdade,
e que ao meu coração ela me entoa;
ou como águia gigante voa, voa,
para lá dos confins da Imensidade.

Quem consegue abafar dentro de nós,
desta águia, o seu grito lancinante
que já gritou no peito dos avós?

A saudade é uma estrela fulgurante,
que aquece o coração dos fala -sós,
fazendo-os reviver a cada instante.

1965


Saudade e Esperança

Saudade é fogo intenso que requeima,
mas dela nasce a esperança que consola.
A esperança é, assim, como uma esmola,
que beija a alma cuja febre queima.

A esperança é sossego; não a freima
dessa louca ambição que ilude e ensola.
Esperança é doce bem que nos evola,
plo céu onde arde um sol que nos não queima.

Saudade é hóstia em sangue ao sol poente,
numa tarde de Agosto e calmaria,
em que a Voz do passado fala à gente.

A esperança é uma flor de simpatia
que beija a nossa dor piedosamente
e lhe promete a luz dum novo dia.

1967


Luz Poentina

Beijei a Natureza à luz poentina,
dum merencório entardecer de Outono.
Minha alma ficou triste, ao abandono,
e um cismar saudoso me domina.

Subi ao céu na névoa vespertina,
e descansei meu ser ao pé do Trono
de Deus...E nesse Reino, em doce sono,
quisera ficar minha alma pequenina.

E desde aí a minha aspiração
que é luz divina que me alumia
e drama desta humana inquietação,

é que os Poentes de Além e Nostalgia
levem o meu saudoso coração
para o Reino inefável da Alegria.


Entre a Paisagem

Ermidinha escondida entre a paisagem
qual no silêncio um monge a meditar,
beijada com brandura pela aragem ,
ais perdidos, talvez, que vão no ar.

Ó segredos correndo na folhagem,
e que tu ermidinha vais guardar!
Ó guarda-as bem ao pé daquela imagem
da Virgem, que é mais pura que o luar.

E se nesse silêncio e soledade
eu for aqui teu monge de saudade
na inquietadora tentação do Além...

Nessa paz de silêncio e doce calma,
dirás esses segredos à minha alma
que eu juro não dizê-los a ninguém.

Penafiel, 1944


A Sombra Vem Caindo

A sombra misteriosa vem caindo
e cai silenciosa e brandamente;
meu ser que tudo ama vai sentindo
o drama dessa hora transcendente.

A sombra desce, desce e vai ungindo
coisas e seres misticamente;
e a lua , além, é grácil flor sorrindo
no seu palor de luz alvinitente.

A sombra é já mais perto. Além na serra,
o dia agonizou. Minha alma erra
sobre aquela tão triste solidão.

Ligado intimamente à natureza
meu peito comovido canta e reza,
por tudo, quanto existe, uma oração.


Tardes de Outubro

Tardes de Outubro, tardes de novena,
ó tardes de oração e de tristeza!
Ó tardes de saudade! A natureza
lá se vai a morrer lenta e serena.

Tardes de sonho. Em tudo arde uma pena.
A luz do sol desmaia de fraqueza...
A cor se diluiu...a mágoa acesa
é lágrima num rosto de açucena.

É já noitinha, a lua em céu de prata
eis a lusa saudade que nos mata
e que nos fez outrora ir mais além.

Tardes de Outubro...tardes como as mais,
mas só vós tendes horas divinais,
que nos falam de tudo e de ninguém.

27 de Outubro 1950


Saudade Errando

Anda a Saudade errando pela serr,a
ouça-a falar na alma dos pinhais.
O seu falar profundo é a voz dum Mais
que vai além do mar, do céu , da terra.

Dentro do peito meu, também, se encerra
e chora dentro em mim penas e ais;
com ela subo às regiões ideias.
E já não ouço o tom tredo da guerra.

Alma de tudo és , Saudade minha!
Tu és religião. És a luzinha
que comigo nasceste pra meu bem.

Ó puro e lusitano coração,
não deixes de rezar esta oração
porque a Saudade é nossa Mãe, também.

29 de Março de 1951


Infância Perdida

Ó minha infância, por aí perdida,
ó minha infância te recordo agora,
raio de luz puríssima da aurora
Graça de Deus , na alma, reflectida.

Infância que no tempo andas batida!
Como o meu coração hoje te chora!
Eu te quisera ter uma só hora,
infância, sonho azu,l da minha vida.

Numa luzente e verde folha de era,
numa mimosa flor de Primavera,
vejo-te, ó minha infância, aberta em flor.

Vejo-te a rir num rosto de criança,
que abre para a vida, toda esperança,
e eu beijo com ternura e com amor.


O Meu livro


É de cinza o meu livro que há-de ler;
é de cinza e de pó...cinzas e nada;
são restos de uma estrela já apagada,
estrela que aqueceu todo o meu ser.

Mas como eu amo e sinto bem querer
à cinza na minha alma sepultada:
Por mais que de mim fuja a madrugada
tenho-o em meus olhos sempre a amanhecer.

Eu vivo de lembranças bem amadas;
sou sombra doutras sombras recordadas;
sou dor e amor por ermos a gritar.

Mas, nas asas do sonho que me eleva,
eu consigo rasgar a minha treva
e ver cinzas e sombras a falar.

15 Dezembro 1947

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